Como somos capazes de promover um genocídio

por Felipe Altarugio*

Às vezes, estudando história, encontramos dificuldades em entender o contexto em que se passaram os acontecimentos do passado. As diferenças nos modos de pensar em épocas distintas nos impedem, com frequência, de enxergar os fatos históricos e entender como foi possível que eles acontecessem.

Um desses episódios é o Holocausto – extermínio de judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Como é possível – nos perguntamos – que a população de um país permita e legitime um genocídio? Como é possível que as pessoas achassem normal a perseguição aos judeus? Não éramos humanos na década de 1930?

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Charge publicada na Áustria após a Primeira Guerra Mundial atribuindo a derrota das tropas alemãs a uma suposta traição dos judeus, que “apunhalaram o exército alemão pelas costas” (Arte: Divulgação)

O Antissemitismo – ódio aos judeus – não é exclusividade dos nazistas. A rejeição aos praticantes do judaísmo tem longa duração, desde a Antiguidade. Os judeus foram perseguidos em diversos continentes ao longo da história, até que esse ódio culminou no Holocausto. Ao longo dos séculos, a imagem do judeu foi estereotipada de maneira muito negativa, sendo atribuídos a eles males como a peste, o pecado, e até crises econômicas e militares.

Após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, por exemplo, uma campanha – chamada hoje em alemão de Dolchstoßlegende, expressão que pode ser traduzida como “o mito da punhalada pelas costas” – foi vastamente difundida pelos jornais alemães. Textos, notícias e charges atribuíam a derrota alemã a uma suposta traição e falta de patriotismo de alguns grupos, entre esses os judeus. A imprensa, incapaz de fazer uma análise crítica e aprofundada, colaborou no processo de construção da imagem negativa dos judeus. Tal construção, realizada em longo prazo e de maneira irresponsável, fez com que muitos, durante o Holocausto, fossem não apenas coniventes como também cúmplices das atrocidades cometidas.

Aí alguém interviria, dizendo-me: “mas hoje não é assim. Hoje não existe a possibilidade de uma tragédia dessas dimensões acontecer”. O engraçado (na verdade, muito triste) é que a história se repete. A Islamofobia hoje é reproduzida sem o menor pudor por publicações jornalísticas pelo mundo.

Filmes, livros, estudos, notícias consolidam a imagem do islâmico e muçulmano em geral como “terrorista” e “inimigo”. O processo é muito semelhante ao que houve com o judaísmo antes da Segunda Guerra. Quem nunca ouviu que “esses árabes são todos loucos assassinos”? A Islamofobia existe desde a chegada dos árabes à Europa na Idade Média, mas ganhou uma projeção extremamente ampliada após os atentados de 2001 nos Estados Unidos. Manifestações públicas em repúdio aos atentados – e muito do que se vê nesses atos são hostilidades ao islamismo – são organizadas, assim como aconteceu na Alemanha na década de 1930.

Quer dizer, então, que vai acontecer algo como uma versão islâmica do Holocausto? Provavelmente não, pelo menos não nos mesmos moldes. Fato é que já temos ofensivas norte-americanas há mais de dez anos contra países do Oriente Médio, e isso é visto com naturalidade por muitos. Fato é que a mídia internacional – nesse meio, sim, a Charlie Hebdo também é incluída – colabora com a construção de um estereótipo do muçulmano absurdamente deturpado e negativo.

Assim como aconteceu com o Antissemitismo antes do Holocausto, a Islamofobia é cada vez mais forte. Vale a pena uma reflexão aprofundada acerca da semelhança entre as duas discriminações e o entendimento de que é, sim, possível, que boa parte da população faça vista grossa a um genocídio. Escolhi a charge para ilustrar isso, devido aos acontecimentos recentes, mas o jornalismo, como um todo, assim como antes, falha hoje em sua missão de estimular o debate sem construir um estereótipo. Falha em sua missão de propiciar uma avaliação verdadeira dos fatos. E, respondendo à pergunta feita no segundo parágrafo: não, não éramos lá muito humanos na década de 1930. E, penso eu, ainda não o somos.

* Felipe Altarugio é colaborador da Revista Lampião

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