Entrevista com Duílio Galli

São anos e anos dedicados à arte e ao incentivo à cultura. O “Pintor Caipira” pode dizer que já fez de tudo um pouco: foi contabilista, fez telas e escreveu livros, e ultimamente se arrisca como cinegrafista. Em 30 minutos de entrevista, Duílio contou um pouco de seus 80 anos de vida, sua exposição na Bienal e sua convivência com Tarsila do Amaral. Confira a entrevista na íntegra:

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Revista Lampião: Primeiramente, nós gostaríamos que o senhor contasse um pouco da sua história de vida.

duílio

(Divulgação)

Duílio: Nossa, minha história tem mais de 80 anos, você pode ficar um dia escutando (risos). Bom, eu praticamente nasci aqui em Ibitinga. Nos anos 30, meu pai veio para cá. Ele era alfaiate aqui, tinha uma alfaiataria ali onde é o Banco Itaú hoje.  Só que, quando eu nasci, Ibitinga não tinha recurso nenhum, e então me levaram para São Carlos. Fiquei lá por uns 40 dias e depois voltei pra cá, onde vivi até os 13 anos. Estudei no Angelo Martino e no Ginásio Municipal Miguel Landim de Ibitinga. Você nem sabe que isso existia, né? Depois eu fui para São Carlos e estudei no Arquidiocesano e depois fui para São Paulo. Nisso, eu já tinha 16 anos. Lá eu fiquei por 40 anos. Formei-me contabilista. Fazendo uma alusão a um artista, foi parecida com a vida de Gogan. Ele tinha um escritório e um dia largou tudo para seguir a carreira de artista. Comigo aconteceu mais ou menos parecido. Só que, nessa altura dos acontecimentos, o dinheiro não dava. Você sabe como é duro viver de arte nesse país. Então eu dividi meu escritório no meio: na parte de trás eu fazia pintura e na parte da frente eu atendia como contabilista. Fui levando enquanto pude. Como eu me aposentei muito cedo, eu então abandonei tudo e me dediquei só à arte. Aí eu viajei o mundo inteiro, comecei a participar de salões, obtive alguns prêmios. Participava de salões no Brasil inteiro, mandava minhas artes para todos. Eu me dediquei sempre a um tipo de trabalho com uma mensagem. Eu até participei de um grupo e eles queriam uma frase para ser a “frase característica” do grupo. “A arte não foi feita para enfeitar paredes e nem para tornar o artista rico ou famoso. Mas, sim, para levar ao mundo algo que eternamente transmita”, foi o que me veio à cabeça. Fui sempre muito criticado por fazer uma arte sempre engajada (seja no religioso, no social, ou mesmo nessa briga contra a poluição). Nesse último caso, nós organizamos um grupo que se chamava “Arte Pensamento Ecológico”. Eu não fui o líder do grupo, foi um espanhol. Mas sem dúvida eu fui seu braço direito. Organizei exposições no Brasil inteiro: estivemos em Brasília, no Rio de Janeiro, no país inteiro. E sempre mostrando o perigo da poluição. E pode ter certeza: fomos um dos pioneiros nesse assunto. Depois, o pessoal da televisão pegou a bandeira para eles e a gente saiu fora, porque não nos interessava a publicidade do fato em si. Para nós, interessava só despertar a consciência da população sobre o assunto.

Lampião: O senhor disse que já viajou o mundo inteiro. Qual dessas viagens que o senhor fez foi a mais especial?

Duílio: Eu até escrevi um livro sobre isso, “Andanças do Pintor Caipira”. Depois escrevi outro, “Andanças e Lembranças do Pintor Caipira”. Foram quase 30 anos viajando, então não tem muito um fato especial. Vejamos (pausa). Organizei uma vez uma exposição no Consulado brasileiro de Milão e vendi tudo no primeiro dia. Fiz uma no Japão também e também vendi praticamente tudo em uma semana. Mas isso não quer dizer que foi sempre assim. Estive algumas vezes nos Estados Unidos, e até vendia os quadros lá, mas tinha que ralar muito.

Lampião: O que levou o senhor a se interessar pela área de Artes Plásticas?

Duílio: Sempre eu fui um rato de museu. Sempre fui apaixonado pelas Artes Plásticas. E sempre fazia uns rabiscos. Mas não sei; um dia recebi uma mensagem espiritual me dizendo que esse era o meu caminho. E a partir daí fui por esse caminho louco e maluco…

Lampião: E quais são suas principais influências?

Duílio: É o seguinte: eu fui aluno da Tarsila do Amaral, certo. Então, claro, que tenho muita influência dela. Ela me ensinou técnica e tal. Mas ela me dizia: “Duílio, você que siga o teu caminho. Pinta o teu mundo interior. E exagera nos gestos”.

Lampião: Falando na Tarsila do Amaral, como o senhor diria que era a convivência com ela?

Duílio: Ela era uma mulher que veio para o mundo 50 anos antes. Tudo que você pode falar de libertação feminina, a Tarsila do Amaral já praticava. Para você ter uma ideia, ela teve 11 maridos! E ela sempre me dizia que era fiel aos seus esposos. Depois de separar, era outra conversa (risos). Ela era uma mulher extraordinária. Ela usava uns brincos muito grandes, que para a época era muito diferente.

Lampião: E de onde o senhor tira a inspiração para pintar, esculpir?

Duílio: Às vezes, a ideia vem dos lugares mais improváveis possíveis. Às vezes, você está em um cinema e vem uma ideia. Só que se você não registrar na hora, você perde. De vez em quando, eu acordo no meio da noite com uma grande ideia boa na cabeça. Aí eu pego um papel, faço um rabisco e vou juntando tudo em uma mala.

Então, em um dia que eu resolvo trabalhar (o que está duro agora [risos]), eu vou lá e escolho um daqueles desenhos e começo a pintar do jeito que eu quero mesmo.

Lampião: O senhor fez parte da XIV Bienal de São Paulo, certo? Pode nos contar um pouco sobre essa experiência?

Duílio: A escolha para a Bienal talvez seja, fazendo uma comparação um tanto quanto grosseira, como ser escolhido para a Seleção Brasileira de Futebol. Claro que é um pouco rude, mas é essa a ideia.

Havia três mil artistas candidatos à Bienal naquele ano, e eu fui um dos 30 escolhidos. Eram 40 peças sobre tudo que você pode imaginar que polui. Mas não era só poluição. Era também retratar o momento político que a gente vivia. Tanto que, quando os militares foram visitar a Bienal, mandaram cobrir o vaso sanitário.

Lampião: E como foi essa influência da ditadura na Bienal?

Duílio: O presidente até mandou fechar 20 dias antes. A Bienal é um evento internacional, vem gente do mundo inteiro aqui. Muita gente chegou lá para ver e a Bienal estava fechada. Sobre aquele vaso sanitário, não era um vaso novo. Eu o achei na rua, todo sujo. Porque eu queria que, quando eu estivesse pintando, eu sentisse aquele nojo do tipo de vida que a gente estava vivendo, da poluição que a gente estava passando.

Lampião: E qual foi o impacto desse vaso na opinião do senhor?

Duílio: Até hoje tem gente que briga comigo por causa dele (risos). Na internet às vezes tem um pessoal que fica criticando. Mas muita gente não entendeu o que eu quis dizer.

Lampião: Falando mais sobre a ditadura, o senhor chegou a receber algum tipo de censura?

Duílio: Não, não sofri com isso. Só que um dia um primo meu que era militar me telefonou e disse: “Duílio, vi seu nome em uma lista e acho bom você ficar um tempo fora do país”. Aí eu fui para a Europa e fiquei seis meses por lá. Mas não tive problema nenhum: andava pelos consulados, tomava uísque com eles lá, teve festa de 7 de setembro em Paris e eu ficava lá bebendo caipirinha com a turma. Não me perguntaram nada. Mas eu tive uma pessoa que me falou “Vai embora que o bicho vai pegar”…

Lampião: Quanto à Bienal, o senhor acha que ela ainda faz sentido atualmente?

Duílio: Naquele tempo, a Bienal era democrática. Todo mundo mandava trabalho e tinha chances de ser escolhido. Hoje é algo mais elitista. Eles escolhem os artistas que eles querem antes mesmo de enviar os trabalhos. E aí entra a influência dos caras que vendem quadro e querem promover o artista… Tem político que tem um filho que começou a pintar ontem e aí ele arranja um jeito do filho entrar na Bienal.

Claro que ainda entra muita gente boa. A própria Tarsila foi convidada a ter uma sala em sua homenagem, vem vários artistas da Europa. Vários ainda participam, mas não é democrático. Para nós que, digamos assim, somos do “segundo time”, fecharam as portas. Mas eu também parei um pouco com isso. Já participei de mais de 180 salões, e, quando cheguei na Bienal, eu falei “Agora chega”. E parei, nunca mais mandei para ninguém.

Lampião: E quanto à arte brasileira, o senhor acha que ela anda sendo valorizada ou o senhor acha que o mercado ainda é incipiente?

Duílio: Se você ler os jornais, parece até que a arte morreu. Quando eu ainda estava na ativa mesmo, há alguns anos, todos os jornais tinham o seu crítico de arte, tinham uma página inteira de arte. Eu tenho reportagens aí guardadas com uma página inteira sobre alguns artistas. Havia uma crítica de arte, havia um interesse popular de arte, que eu não vejo mais hoje. Não há mais interesse, ninguém mais quer saber de pintura.

Portinari, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Ademir Martins: os jornais só falam dessa gente. Atualmente devem ter alguns contemporâneos muito bons. Eu, na verdade, estou por fora do movimento artístico brasileiro, porque eu me isolei. Quando eu completei 70 anos, eu voltei para Ibitinga. Queria sossegar, não viajar mais, não ficar mais indo para salões, não ter mais preocupação com esse tipo de coisa. Mas eu fui para os Estados Unidos e trouxe de lá uma câmera de filmar. Aí começou a briga de novo. Comecei a fazer curta-metragem para televisão e fui levando minha vida assim.

Lampião: Como o senhor analisa a influência da religiosidade no seu trabalho?

Duílio: Bem, eu tive uma fase totalmente espiritualizada. Foram, se não me engano, mais de 800 trabalhos. Já ouviu falar no padre Otímio Ticianelli? Depois de eu fazer a Via Sacra para a Igreja, ele me chamou e me perguntou: “Duílio, quantos quadros você já pintou?”. Naquela altura, eram uns 800. Ele disse: “E quantos religiosos?”, que eram uns 400. Então ele me falou: “Isso é mais que um apostolado”. Então, a espiritualidade está muito presente no meu trabalho.

Lampião: Outro ponto que é importante abordar é quanto à educação. O senhor acha que as pessoas tem que ter uma educação visual?

Duílio: Acho, tanto é que tenho feito um trabalho mais com as crianças. Eu convido as escolas para vir aqui em casa e falo para a molecada tudo isso que a gente está conversando aqui. Enche a casa de criança. Não sei se você viu, mas no Dia do Museu, as escolas levaram as crianças lá também. Parece-me que as escolas estão fazendo um trabalho junto às crianças sobre arte.

Eu tenho esperança que aqui em Ibitinga que um dia um desses “meninos” que vem aí goste de arte. Quando um governador gosta de arte, ele faz uma revolução. Nem o artista é tão importante, não pense que o artista é importante. Importante é isso daqui. Nós vamos embora daqui um tempo, mas isso daqui fica aí falando, explicando para o pessoal que esse tipo de vida não serve…

Lampião: O museu daqui de Ibitinga, apesar de ter um dos maiores acervos da região, acaba que ficando esquecido pela população. O que o senhor acha disso?

Duílio: Isso é por causa da educação. Não adianta. Por isso que eu falo sempre que educação é mais importante que comida. Se você der educação para um povo, ele luta pela comida. E se você só der a comida para o cara, ele não vai lutar nunca. Quando você vai na escola, você aprende tudo: aprende política, aprende a se defender, aprende a levar uma vida melhor.

Lampião: E o que o senhor acha que tem que ser feito, tanto aqui em Ibitinga quanto a nível nacional, para o fomento da cultura?

Duílio: É o seguinte: o museu foi feito em 1970. São 43 anos já. Eu consegui essas obras para lá porque naquela época eu ainda estava na ativa. Eu era amigo da Tarsila, de outros artistas. Eu pedia obras para eles e eles doavam para o museu. Então, tinha aqui 130 obras. Hoje não tem nem 100. Por que isso: eu doei essas coisas para a prefeitura, e coisa da prefeitura não tem dono. Cada vez que entra um prefeito, é outra cabeça. Entra um diretor de museu que não gosta de arte e ele estraga tudo. Então, não tem jeito. Agora, se todos fossem educados, os dirigentes saberiam dar valor a isso, o povo saberia dar valor a isso. E o museu está lá. O lugar realmente não é muito bom, mas pelo menos as obras estão bem preservadas.

Lampião: O senhor comentou que escreveu um livro, “Andanças do pintor caipira”. Qual é a influência que o interior tem na sua obra?

Duílio: Sou um pintor que tem o pé aqui, certo. Quando eu fui para São Paulo, você vê que a cidade grande me perturbou completamente. Nunca me adaptei lá. Morei lá por 40 anos.E sempre tive nostalgia daqui de Ibitinga. Tanto é que eu escrevi um outro livro, um romance. Essa obra, de um certa forma, é feita de memórias. Nele, você percebe totalmente a minha nostalgia do interior. E eu acabei voltando para cá. Por causa disso, eu acabei me isolando na arte, me isolei dos grande movimentos e fiquei esquecido. Por culpa minha mesmo. Eu que saí da briga. Se bem que agora com a internet, ninguém me segura mais (risos).

Lampião: Já que o senhor falou da internet, como o senhor diria que a internet contribui para a difusão das obras de arte?

Duílio: É o seguinte: eu só vejo no Facebook fofoca, coisas fúteis. Eu estou tentando difundir minhas obras e também obras de outros artistas lá. Queria que as pessoas parassem com essa bobeira, sabe. Esses dias eu postei um filme de Rudolph Valentino. Ele foi um artista dos anos 30, era um ícone na época. Quando ele morreu, com 30 e poucos anos, foi uma comoção no mundo inteiro, fizeram missa em São Paulo até, eram multidões mobilizadas. Então, eu coloquei um filme dele dançando tango, é lindo, uma coisa maravilhosa. Também coloquei esses dias um filme do Bogart e da Ingrid Bergman, “Casablanca”. Mas ninguém liga para isso. Você vê lá só uns três ou quatro acessos, no máximo uns dez. É uma coisa tão bonita, obras que ficaram para a história. Mas o pessoal só pensa em besteira, em churrasco, balada. Tudo bem que a fofoca faz parte, mas vamos pensar em algumas coisinhas melhores, né.

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