Vergonha e Orgulho

por Gabriel de Castro

(Danillo Sperandio/UOL)

(Danillo Sperandio/UOL)

Como experimentar dois sentimentos tão diferentes assim no mesmo momento é o que eu estou tentando entender. São tantas coisas erradas acontecendo ao mesmo tempo – e relacionadas ao mesmo fato – que eu fico desapontado tanto com a sociedade quanto com a mídia brasileira e seus comunicadores.

Bom, vamos lá. Tudo começou na semana passada, quando a população de São Paulo (finalmente) se cansou de ser abusada pelo poder público e organizou uma manifestação contra o aumento de R$0,20 na tarifa de ônibus. Sim, tivemos exageros nesse ato de protesto – e ninguém discorda disso – mas foram atos isolados, praticados por uma minoria que perdeu o controle dentro da manifestação.

E é nesse momento, antes de chegar a um dos pontos cruciais deste texto, que introduzo a seguinte tese: que advento é a internet para a comunicação! Porque não importa se a grande mídia não noticia mais. Todos têm acesso à informação, seja por algum blog ou pelas próprias redes sociais.

Eu disse tudo isso para chegar a este ponto: foi pelas redes sociais que muitos dos presentes na manifestação em São Paulo puderam dizer, nas visões deles, é claro, o que aconteceu ali.

Quando chegamos na Sé, a concentração nas escadas da catedral e na praça – até então pacífica – já era esperada por uma operação do choque. Não fizemos nada, ninguém fez nada, ninguém quebrava nada no momento, nada. Vieram as primeiras bombas, que atingiram a catedral e ricochetearam em cima das pessoas. Explosões vinham de todos os lados, eles atiravam onde tinha gente. A partir daí começou o caos. A polícia perseguiu e encularrou a parte da manifestação que não se dissipou, porque, depois das várias bombas, começou a correr cada um pro seu lado. Pelo que ouvi, o glicério virou uma guerra, com policiais encurralando as pessoas em becos e ruas sem saída e disparando balas de borracha e bombas de efeito moral, em uma manifestação que já havia acabado. As pessoas estavam só fugindo.”

Esse é um dos depoimentos de manifestantes que se propagou pelo Facebook. Antonio Prado, assessor de comunicação e aluno de Jornalismo da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas), foi o autor dessa publicação. Conversando com ele, pude sentir um pouco do que aconteceu em outro dia de manifestação e uso desnecessário de força por parte da PM.

Bem, a concentração foi linda, todo mundo cantava junto, pacificamente. De lá até a Consolação com a Maria Antonia foi tudo bem. Não víamos policiais fazendo escolta, eles não delimitaram um caminho nem nada. Ao chegar na Consolação, um cordão de policiais impediu que subíssemos. Mas por pouco tempo. Eles não dialogaram, não tinha um comandante ali, falaram um pouco com alguns representantes do movimento e tal, mas mais nada. Eu não estava tão perto, não ouvi como foi. Uma amiga minha, da organização, afirmou que não havia nenhum comandante da PM. Esse cordão virou as costas e começou a subir. Entendemos que poderíamos subir. Quando começamos a seguí-los, a tropa de choque apareceu do nada e começou a atirar para todo lado. Eu considero o que aconteceu como uma emboscada. A polícia já se preparava para o confronto desde às 14h. Ônibus e mais ônibus do choque já nos esperavam. E a partir daí a manifestação se fragmentou. Um grupo maior correu pra Augusta e foi caçado pelos políciais. Eles não nos permitiam fugir, eles iam atrás, atirando. Não nos deixavam sair dali nem nos dispersar. Eu me separei desse grupo e fui até o Anhagabaú onde encontrei mais manifestantes perdidos. Nos reunimos e fomos para a Consolação”.

Eis aqui o primeiro sentimento de vergonha: a atuação da polícia, como se vê constantemente na história do Brasil, não é a favor da população, mas sim a favor de uma minoria que detém o poder. Uma herança do período de ditadura, talvez. O fato é que, muitas vezes, as pessoas têm medo da PM. Isso mesmo: medo de quem deveria proteger!

São inúmeros os vídeos na internet que mostram o abuso de poder por parte da Polícia Militar. Eis aqui um deles:

Não são necessárias mais explanações aqui senão dizer o quanto me indigna ver um despreparo tão grande por parte da PM e daqueles que dão as ordens. Sim, porque a polícia recebe ordem para agir (de forma totalmente enganada) nessas situações.

É intolerável a ação de baderneiros e vândalos. (…) A polícia tem um trabalho importante sempre que há movimentos na cidade de São Paulo. A orientação é acompanhar e garantir a integridade das pessoas. Ela agiu com profissionalismo”, foi o que disse o nosso querido governador Geraldo Alckmin, direto de Paris, na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Ao analisar essa declaração, percebemos o quanto o governador foi infeliz em defender a ação da polícia. Generalizou todo um movimento como “baderneiros” e defendeu a violência contra parte das pessoas que estava apenas lutando por seus direitos. Mas, para Alckmin, essa violência contra os manifestantes teve o único intuito de proteger a população (não aquela que estava ali presente, é lógico).

A segunda causa da vergonha foi também o que permitiu que o senhor governador dissesse algo tão ilusório. A grande mídia – encaixo aqui várias emissoras de TV, grandes jornais, emissoras de rádio – mostraram o quão interesseiras são durante a última semana.

Tomando como base a Folha de S. Paulo: primeiramente, como também foi compartilhado pelo Facebook, a Folha trazia em sua capa dois movimentos de luta com duas abordagens totalmente diferentes. Com maior destaque, a manchete principal do diário era “Contra tarifa, manifestantes vandalizam o centro de SP”. Na mesma página, mas com menor ênfase, outra manchete era “Polícia da Turquia reprime ativistas em praças de Istambul”.

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O diferente tratamento para os protestos no Brasil e na Turquia (Reprodução)

Só com uma capa percebemos o quanto o jornal foi tendencioso, mostrando que, no Brasil, a PM libera as vias e garante o bem-estar do povo, mas, na Turquia, a polícia reprime o direito de manifestação.

E isso não fica por aí. Enquanto não era conveniente lutar pelo direito dos manifestantes, a mídia tratava o ato como vandalismo e baderna. A partir do momento em que jornalistas – dos grandes veículos – começaram a sofrer com a repressão policial, a abordagem se tornou completamente diferente.

No Rio

No último domingo, 16, um protesto foi realizado no Rio de Janeiro, próximo ao Maracanã. Foi ali que surgiu um fio de esperança em relação à mídia e mais uma tonelada de vergonha em relação à polícia e a um dos maiores órgãos mundiais.

As rádios CBN e Bandeirantes (que eu acompanhei, pelo menos) noticiavam o que acontecia na manifestação. As emissoras tinham repórteres em campo que diziam exatamente o que estava acontecendo ali. Imagino que o áudio por si só se explique:

O terceiro motivo de vergonha, como não podia ser diferente, vem por parte dos comunicadores. Existem aqueles de quem você já espera ouvir asneira. Reinaldo Azevedo, por exemplo, sempre solta algumas pérolas que são até cômicas de tão ridículas que soam.

Agora, por que é tão repreensivo que um comunicador fale asneiras? Pelo simples fato de que, diferente de uma “pessoa comum”, o comunicador possui mais credibilidade e aquilo que ele diz pode alterar opiniões de diversas outras pessoas. Isso sem contar que a propagação de sua fala é muito maior que de outros indivíduos.

Léo Bianchi, repórter esportivo da TV Globo, teve a incrível habilidade de desmoralizar um protesto via Twitter com a alegação de que “tinha que desviar o carro por causa de marginal”, dizendo que “a polícia tem que abrir fogo contra esses marginais” e que, “quer protestar, vai na prefeitura! Fez bagunça, é soco no rim e pede pra sair”. É um exemplo do que um jornalista não deveria dizere pensar. Ou melhor: é um exemplo do que um SER HUMANO não deveria dizer e pensar.

(Reprodução)

(Reprodução)

O último tópico de vergonha é em relação a uma parcela da sociedade que insiste em achar que tudo isso é uma baderna, que a polícia tem que atirar nos vândalos, que tudo está uma beleza, que é tudo por causa de R$0,20.

A outra parcela da população é meu único motivo de orgulho. Orgulho de ser brasileiro e de saber que meu povo finalmente chegou ao seu limite de paciência e que não vai mais ser feito de trouxa. Em meio a tanta babaquice que aparece todos os dias pela internet, finalmente eu vejo que o Brasil acordou. Essa última semana talvez tenha sido a única em que a quantidade de links úteis no Facebook tenha sido maior que a de porcarias.

Outro ponto positivo que pode se tirar de tudo isso é o seguinte: talvez pela primeira vez nesse meu curto período de vida eu vi um protesto que não se ligava a partido nenhum. Não importa se você é do PT, do PSDB, extrema esquerda ou direita. A causa não é partidária, o que é uma evolução muito grande. Questões egoístas de política foram deixadas de lado para que o bem-estar da população fosse posto em primeiro lugar.

Há de se fazer uma ressalva, no entanto, em relação aos perigos que esses protestos carregam. O processo tem que ser progressivo, ou seja, dividido em etapas. A luta deve ter focos e atingir as reivindicações pouco a pouco. Algo desorganizado como se viu em vários locais no Brasil traz consigo o risco de um golpe. Além disso, a população deve se educar politicamente, de tal modo que as reivindicações tenham fundamento. Cartazes do tipo “No Brasil vivemos uma ilusão pois só existe corrupção”, como vi nas ruas de Bauru na última semana, não levam a nada.

Se você teve saco de ler esse texto até o fim, talvez você faça parte de uma (ainda) pequena parcela da população que está aberta ao diálogo e às discussões; que não adota simplesmente o discurso do senso comum; que não toma tudo que é veiculado pelos jornais por aí como verdade absoluta. Se você é um daqueles que precisa de um empurrão, aproveite que esse é o momento. Se você ainda não se convenceu se vale a pena, reflita mais um pouco e procure debater essa questão. Eu tenho certeza que, se todos parassem para pensar, as ruas estariam lotadas e nossa voz finalmente seria ouvida. 

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