Resenha – “Fahrenheit 451”

por Rafael Barizan

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(Reprodução)

A distopia “Fahrenheit 451” escrita por Ray Bradbury e levada ao cinema por Truffaut que em sua própria definição foi o mais “mais anti-romântico dos românticos modernos” apresenta-nos um futuro no qual as pessoas são proibidas de lerem e os bombeiros perderam sua função original de apagar incêndios, pois todas as casas são a prova de fogo, sendo, então, os responsáveis pela destruição desses objetos que seriam danosos a sociedade.

Nesse futuro, a alienação é dominante e o senso crítico completamente ausente e busca-se preencher o vazio existencial por meio de programas de televisão com enredos extremamente simples. A cena em que Linda Montag “atua” em um dos programas da “Família” é emblemática, especialmente se considerarmos que vivemos em tempos em que os as pessoas tal como Linda se iludem, em especial, com a internet, e passam a achar que são protagonistas de mudanças sociais ou simplesmente fazem parte de algo importante por pertencerem a uma determinada rede social, terem postado uma mensagem de repúdio a algum ato em seus perfis internet, enviado e-mails/correntes para ajudar crianças na África ou “irem” a algum evento marcado virtualmente.  Essa é essencialmente a mesma ilusão criada pelo regime totalitário dessa distopia, mas em sociedades democráticas e pretensamente livres. Isto é, não estamos a cada dia nos alienando e deixando a tarefa de pensar para os outros ou para as ferramentas de busca que parecem poder fornecer respostas para todas as questões ao custo de um clique?

A cena nos lembra ainda da importância da literatura para se compreender o mundo ou simplesmente prover algum sentido à existência humana. A literatura diferentemente das ciências exatas ou dos conhecimentos técnico não possui uma função definida e de aplicação imediata ou uma resposta para problemas práticos e triviais, porém sem ela ou seu meio de propagação, os livros, qual seria o sentido de nossa existência? Cortar a grama talvez? Emblemático é o diálogo entre Montag e seu superior:

” – O que faz nas horas de folga, Montag?

– Muita coisa… corto a grama…

– E se fosse proibido?

– Ficaria olhando crescer, senhor.

– Você tem futuro.”

A história prossegue e Montag, tal como uma das personagens do mito da caverna de Platão, se liberta de seus grilhões e toma contato com os livros. Nesse processo a influência de Clarice é decisiva, ela que é uma jovem professora é a responsável por incutir em Montag a ideia de que a literatura talvez não seja algo tão ruim como prega o senso comum. Montag começa a roubar livros que deveriam ser queimados e lê-los secretamente. Percebe que aquelas palavras, apesar de muitas vezes incompreensíveis para ele, lhe trazem uma nova dimensão a ser explorada, uma dimensão da vida definida por Proust como: “A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta, a única vida, pois, plenamente vivida, é a literatura.”

Essa mudança provoca em Montag uma reação à sociedade na qual vivia, pois ela se mostra incompleta, vazia, fútil, tal como a sociedade sem literatura que parece surgir em nossa atual realidade descrita por Vargas Llosa em um ensaio recente:

“Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre da palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo, o mundo sem romances, esse pesadelo que procuro delinear, teria como traço principal o conformismo, a submissão dos seres humanos ao estabelecido. Seria um mundo animal. Os instintos básicos decidiriam a rotina de uma vida oprimida pela luta pela sobrevivência, pelo medo do desconhecido, pela satisfação das necessidades físicas, em que não haveria espaço para o espírito e a que, à monotonia sufocante da vida, acompanharia o pessimismo, a sensação de que a vida humana sempre será assim, e que nada nem ninguém poderá mudar o estado das coisas.”

Esse processo culmina com Montag lendo trechos de um livro a Linda e suas amigas. A estranheza delas ao novo, ao desconhecido é tamanha que Linda o denuncia. Essa situação é claramente um demonstrativo da função que possui a censura em um regime totalitário. Por meio da total alienação de sua população, ela cumpre ordens sem as questionar mesmo que isso afete seus entes mais próximos. Torna os indivíduos apáticos, conformados e incapazes de perceberem as atrocidades cometidas não somente por esse Estado, mas por eles mesmos.

Posteriormente nossa personagem já consciente dos males que permeiam seu cotidiano e da vulgaridade de suas ações é designada para o que será a maior de todas as profanações do que lhe é agora sagrado: a queima de uma biblioteca secreta mantida na casa de Clarisse. A quantidade de livros impressiona os oficiais que decidem queimar toda a casa. A protetora dessa coleção não se submete as ordens de evacuação e prefere morrer junto a seus livros a os abandonar e se subjugar a ignorância coletiva. A representatividade dessa cena é inegável, ela não pretende criar a figura de um mártir que morre por seus ideais, mas mostrar a força que o livre pensamento expresso por aquela vasta biblioteca e seus inúmeros tomos possuem. Além disso, é o estopim para que Montag tome a decisão de se libertar de seu papel na ordem social estabelecida e fugir.

A fuga é proposta por Clarisse e os dois rumam à terra dos homens-livro, na qual diversos indivíduos se “transformam” em seus livros prediletos, decorando-os para que um dia possam ser republicados.

Reside nessa cena final o que é a essência dessa distopia, um alerta sobre os perigos da acomodação do pensamento. A solução para esse problema seria a tomada de consciência de alguns para que pudessem disseminar o contato com esse objeto estranho. Solução que também parece ser a encontrada por Vargas Llosa em seu ensaio previamente citado:

“Se queremos evitar que com os romances desapareça, ou permaneça apartada no desvão das coisas inúteis, essa fonte que estimula a imaginação e a insatisfação, que nos aguça a sensibilidade e nos ensina a falar com força expressiva e rigor, e nos torna mais livres e nossas vidas mais ricas e intensas, é necessário agir. Há que ler os bons livros e incitar a ler, e ensinar a fazer isso a quantos venham depois de nós – nas famílias e nas aulas, nos meios de comunicação de massa e em todos os setores da vida comum – como uma ocupação imprescindível, pois que é a que imprime a sua marca em todos os demais, e os enriquece.”

Obs.: O ensaio de Maro Vargas Llosa ao qual o autor se refere pode ser encontrado em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-37/questoes-literarias/em-defesa-do-romance

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